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04 September 2006

Elogio do Amor

E continuando nesta tónica do copy/paste, que a falta de tempo me obriga a manter, nada melhor que isto, nesta altura...

Adoro metáforas e "duplos sentidos" - são meios fáceis inventados especialmente para gente envergonhada como eu - de tal modo que às vezes chego a abusar deles (deles, dos meios - que justificam os fins - entenda-se).

Na vida tudo pode ter um duplo sentido, mesmo que só seja pra dentro e pra fora... repedidas vezes! - cá está a metáfora ... e a mente preversa que me caracterizam!

Este texto(zinho) já foi escrito há uns aninhos e é do senhor responsável por um dos maiores mistérios da humanidade - ter duas filhas digamos que........Bonitas? - Por outro lado escreve como pensa, ou melhor pensa como fala, ou fala como pensa... epá não sei, mas gosto dele!

...e reza assim:

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber.

Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível.

Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e é mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.

O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.

Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banançides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.

O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos.
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.

Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.

O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. é uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.

A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.

O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.

O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente.

O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.

O amor é uma coisa, a vida é outra.

A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.

Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra.

A vida dura a Vida inteira, o amor não.

Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso in Expresso

20 January 2006

Vidas Perdidas


É, ao fim ao cabo, um retrato fiel do MEC - o Dr. Pastilhas - de algumas vidas...perdidas

Vou falar da coisa mais triste do mundo, mais triste do que a memória, mais triste do que a tristeza.

Não tem nome. Mas é fácil de descrever: é o conjunto de todas as coisas que podiam ter acontecido e não aconteceram. É a vida vinte vezes maior que a nossa vida. É a soma de todas as oportunidades perdidas, de todas as alternativas não-escolhidas, das pessoas que não chegámos a conhecer melhor, dos tempos que não passámos, dos sítios aonde podíamos ter ido e não fomos, dos filhos que não tivemos, da pessoa que mais amámos, das noites que partilhámos com os nossos amantes, com os nossos amigos, com o nosso sangue.

Esta tristeza não vem de um acaso. Não dói imaginar o que se perdeu sem saber o que se perdia. Nasce da consciência que todas as nossas escolhas acabam por ser interrupções. Os meus pais vão morrer antes de mim, as minhas filhas vão crescer enquanto eu envelhecer, e nunca hei-de recuperar o tempo que não passei com eles.

Esta tristeza é pior do que a saudade, que vem de uma alegria que ao menos existiu, mesmo que nunca mais se possa repetir. É a soma dos futuros que não foram. É o tempo todo, dentro do qual o nosso próprio tempo é apenas um momento.

Penso no que não deixei continuar, nas sementes que me caíram nas mãos e eu não deitei à terra, nas vezes em que a felicidade veio ter comigo e eu fugi, nas outras em que a vi passar à frente dos olhos, e encho-me da maior tristeza do mundo, que não é passado, nem futuro, mas presente, presente no pensamento, presente no coração eternamente.

"Se ao menos, eu tivesse...", "se eu soubesse, naquela altura...", "se conseguisse acabar o que tinha começado". São estas as frases que mais se formam na minha cabeça. De repente aprendo que comecei mil coisas e não fui capaz de acabar nenhuma. Não segui nada à sua suposta conclusão. Nunca fui claro ou determinado. Portei-me sempre como um inventor ou como um fugitivo. É um arrependimento acumulado, de milhares de vezes que acabaram por ser vezes sem exemplo, que não fui capaz de viver e perseguir. O facto de ter abandonado tantas vezes faz com que sejam tantas as vezes perdidas.

Lembro-me das pessoas com quem me zanguei, e dos tempos que não partilhei com elas por não ter feito as pazes; mas depois lembro-me das pessoas que conheci por me ter zangado com elas. Nesta multiplicação de princípios sem fins e de substituições sem razão vejo a minha vida como um mapa em que um lugar vai dar a outro mais longe, mas não pode voltar a ele.

Não é uma questão pessoal. Entristece-me pensar em Portugal, caso não tivesse decidido desperdiçar as energias nos descobrimentos, ou no mundo inteiro se Cristo não tivesse morrido, se os Homens não fossem dados à guerra ou se os nazis não tivessem existido.

Parece-me que, ao lado de cada existência, seja de uma pessoa ou de um país, correm dezenas de existências paralelas, que se somam na nossa consciência e que são necessariamente mais bonitas e mais fortes do que aquela que ficou.

Imaginem dois namorados que nunca dormiram juntos. Depois de fazer amor, adormecem nos braços um do outro mas acordam sobressaltados às seis da manhã, com medo dos pais que esperam em casa.

Levantam-se e vestem-se no frio da madrugada, ensonados e surpreendidos, como se tivessem de fazer uma longa viagem ao Algarve. Ele leva-a a casa. Despedem-se. Mesmo que mais tarde passem a vida juntos, quem lhes restitui as noites todas em que não dormiram agarrados um ao outro e as manhãs em que não acordaram juntos?

Esta vida que podíamos ter vivido e não vivemos, assombra a vida que acabamos por ter. nunca a conseguimos vingar. Não tem recuperação. Vive cada uma dentro de nós como uma vida perdida.

Quando se percebe que nunca se vai ser bombeiro ou cirurgião; quando se vê outro Homem a chegar primeiro à Lua ou a escrever o livro que se tinha a esperança de escrever; vive-se uma espécie de morte. É claro que o bom senso e o espírito de sobrevivência nos recomendam que não nos arrependamos de nada e que não pensemos "nessas coisas". O melhor é pensar que as nossas escolhas ao longo da vida "valeram a pena" porque nos trouxeram ao ponto onde agora estamos. Se não tivéssemos abandonado o sítio X nunca teríamos tido o prazer de viver no sítio Y onde presentemente apascentamos; se não tivéssemos deixado a pessoa Z nunca teríamos tido o prazer de conhecer a pessoa A. Etcetera. Este deve ser o pensamento mais estúpido e comodista da história da existência humana. Equivale a dizer "tudo acaba por acabar bem, faça o que se fizer" A verdade é que a nossa vida é uma mixórdia de acasos e de erros, à mistura com uma dose de decisões inteligentes, em que esbracejamos como formigas caídas na massa de pão-de-ló.

Tanto o nosso passado como o nosso futuro são tão contingentes, isto é, dependem tanto de pequenas coisas, incidentes que dominámos ou não de uma ou de outra forma, que são praticante insignificantes, perdidos no meio da maré de variantes.

A mania dos portugueses, de falar em destino e em fado, irrita-me imenso. Traduz uma rendição, um acto de premeditada estupidez, que é dizer: "no fundo, no fundo, tanto faz, porque não há nada a fazer". Mas um destino tanto pode ser Porto/Campanhã como Leiria ou Tunes ou Figueiró dos Vinhos, conforme o comboio que se apanhar. Escolher um caminho e um destino é pôr de parte mais de mil outros. Em cada decisão esconde-se a tristeza e a raiva de mil rejeições. É por isso que compreendo as pessoas que preferem andar à deriva, que deixam que sejam os outros a decidir por elas, que abdicam de escolher. Podem ao menos sentir-se livres de responsabilidade. Mas vem dar ao mesmo. Se não formos estúpidos, seremos sempre acompanhados pelo que poderia ter sido, por quem poderíamos ter ao nosso lado, por quem poderíamos ser. Só com uma arrogância extrema se poderia pensar que estas vidas são todas piores que a presente.

Por mim, sinto-me como os outros, preso a uma vida que me cabe mas que não me pertence. Tenho saudades de tudo o que não chegou a acontecer. Quando adormeço, sonho com dias que não passei, mas podia ter passado. Não me queixo de nada, mas só de pensar no que perdi, por minha culpa ou culpa de outros, automaticamente entristeço e apetece-me um bocadinho menos continuar a viver.

Ao lado da minha vida, há dez vidas que não vivi. Em cada momento, passo de uma para a outra com a angústia de não poder vivê-las todas ao mesmo tempo. A causa desta tristeza é o coração humano, que é maior que o corpo onde bate, e que nada compreende. Bem posso gritar, até ter a cara azul, que não se pode ter tudo, que não se pode ser senão uma só pessoa ao mesmo tempo. Mas o coração não aceita. Está soterrado pelas avalanches dos passados que não teve e dos futuros que não irá ter. Bem podemos ter saudades dos tempos que já vivemos e esperanças naqueles que ainda nos restam viver, mas ninguém nos tira, ninguém nos dá, aquilo que, só pelo facto de vivermos uma só vida, estamos eternamente a perder.

Miguel Esteves Cardoso

Imagem gentilmente "sacada" de www.henricartoon.com